domingo, 9 de setembro de 2007

Quando a delação se acovarda

Marcos Pastich
08/09/2007
Quando a delação se acovarda
Para Celso Sobral, a mulher quase sempre volta atrás
Tiago Barbosa
Enfrentar a violência doméstica exige da mulher mais que coragem. Denunciar à polícia o companheiro de lar é um ato que pressupõe capacidade de romper com uma relação imersa na agressividade e consciência de que a atitude tomada vai desfalcar o núcleo da família. A decisão de mandar o agressor para a cadeia situa a vítima no ambíguo papel de quem salva a própria vida e, ao mesmo tempo, aborta da residência o convívio com um parente infrator. O cenário se complica quando o homem é o pilar de sustentação financeira da casa. Afastá-lo significa se lançar a uma provável condição de penúria em que a carência pauta o cotidiano. Somada às pressões de um ambiente em que a tradição cega as pessoas para a hostilidade machista, a delação se acovarda. A quarta reportagem da série da Folha sobre a aplicabilidade da Lei Maria da Penha mostra que, em Palmares, na Mata Sul do Estado, o dilema entre encerrar as agressões e desestruturar a família intimida o combate à violência de gênero. A dificuldade em manter a denúncia contra os companheiros criou um rito processual que angustia a Justiça de Palmares, cidade de 55 mil habitantes, a 125 quilômetros do Recife. Mulheres agredidas acionam a polícia e conseguem prender seus maridos. Mas se arrependem e pedem que eles sejam colocados em liberdade. O recuo ocorre quase que imediatamente depois de elas se aperceberem do impacto causado pelo afastamento do homem. Há casos de vítimas que vão até o presídio para onde o parceiro foi recolhido e imploram pela sua saída.
A conduta feminina, segundo a juíza criminal do município, Hydia Landim, tem esvaziado os inquéritos instaurados pelas delegacias e tornado “inócuo” o trabalho judicial. A magistrada diz que o problema se relaciona a um artifício da lei que condiciona a punição masculina à representação feita pela mulher diante da Justiça. “Ficamos ao bel-prazer da vítima. No grosso, a tendência é pela não representação nas audiências. Elas nos dão o poder e o retiram quando desistem. Assim, não há como avançar na penalidade. Tenho que expedir o alvará de soltura”, observa Hydia.
A dinâmica no Presídio Rorinildo da Rocha Leão, nos arredores de Palmares, reflete essa lógica. Nos últimos três meses, dez homens foram levados a ele com base na Lei Maria da Penha. Cinco já saíram. Cogita-se que, em pouco tempo, o restante deixe as dependências da unidade. “Uma vez, o rapaz foi preso à tarde e, na manhã seguinte, a mulher dele lhe trouxe um café da manhã, pedindo a sua soltura. Há umas que até nos pedem ‘desculpas’ para vê-los soltos. Não podemos fazer isso, é claro, mas sabemos que ela não vai adiante na Justiça”, frisou o diretor do presídio, Celso Sobral. “Às vezes, a mulher não tem idéia da proporção da denúncia. Procura a polícia, mas não sabe que o marido vai preso. Por isso, volta atrás”, ponderou.
O retrocesso encontra razão numa soma de fatores que oscilam da privação financeira ao desamparo do Estado. A juíza Hydia Landim argumenta que as mulheres na região de Palmares dependem economicamente dos maridos e, por isso, não conseguem prescindir deles - mesmo diante da violência. Sustenta, ainda, que elas têm uma interpretação equivocada da lei ao julgar que a medida afastará apenas provisoriamente o companheiro. Em geral, até que o efeito da bebida alcoólica - considerada o principal combustível das agressões - acabe. “As mulheres dizem que, quando os maridos não bebem, são ‘bonzinhos’. Assim, elas usam a lei para se separar enquanto eles estão ébrios”, avalia.
Para a juíza, a Maria da Penha - apesar da tentativa - peca por não conseguir salvar a estrutura familiar. Objetivo que seria alcançado com a participação do Estado. “A prisão surte efeito porque evita a agressão. Mas pára por aí. Se é para reparar, seria melhor tratar o marido. Aliás, a família precisa de tratamento porque não é somente a violência que incomoda. Há, entre outras questões, o vício, o desemprego. Se o Estado fizesse sua parte, seria ótimo”, assinala.

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